Quero compartilhar uma experiência que vivi recentemente. Passei um ano na Holanda agora, entre julho/17 e julho/18. Em alguns dias que minhas crianças estavam na escola, consegui ir a museus e passear bastante. Um dos dias mais fortes foi quando fui no quarteirão judeu. Comecei na sinagoga portuguesa, e aprendi uma série de questões sobre os rituais religiosos judeus, sobre a circuncisão, sobre a menstruação, sobre a sexualidade. Está tudo dentro da Sinagoga. De lá, fui para o museu judeu. Novamente, uma imersão na cultura, com os ritos do casamento, os ritos religiosos diários. Eu não conhecia nada daquilo. Entendi como eu sabia (e ainda sei pouco) sobre ser judeu. Lá pelas tantas, em algum espaço do museu finalmente minha ficha caiu vendo as fotos: os traços dos judeus são diferentes dos loiros que eu via muito na Holanda. E também os cabelos são diferentes. Sei que eu estudei isso na escola, sei que eu já tinha lido e visto muita coisa sobre a tal história da raça ariana e que Hitler queria purificar a raça. Mas eu não tinha ideia disso de forma tão clara quanto naquele dia. Ao ver os costumes, as tradições e as fotos, fui percebendo a diferença. Fui percebendo o desconhecimento que eu tinha sobre essas diferenças. E, de repente, como um raio, percebi a questão racial que estava colocada. Comecei a chorar. E não consegui ir para o museu do holocausto. O museu judeu já me doeu demais.
Essa relação entre desconhecimento da diferença e a não implicação com a defesa desse grupo é uma coisa que fiquei a pensar. Claro que sempre me solidarizei com os judeus em todos os momentos que estudei o Holocausto. Mas eu sabia tão pouco sobre eles. Talvez se eu conhecesse mais, defenderia mais. Essa é a crença que temos quando pensamos na educação em sexualidade e na abordagem das sexualidades não heterossexuais ou as identidades trans no ambiente escolar. Essa questão do conhecimento e humanização como estratégia para a defesa dos direitos foi o que pautou o movimento em outros momentos históricos em que a pauta era a defesa que todos saíssem dos armários. Vejam o filme Milk que aborda isso muito bem. Defendo sim a abordagem educativa desses temas, para que o conhecimento e a humanização gerem empatia e engajamento na luta pelos direitos. Mas não defendo que todo mundo saia do armário sem avaliar se isso é viável ou seguro… O armário sufoca, mas em alguns contextos também protege e temos que considerar esses dois lados.
Mas o que eu quero contar mesmo para vocês hoje é sobre a continuidade do meu passeio no dia do quarteirão judeu.
Andando sem rumo por Amsterdam, acabei caindo no museu da resistência holandesa a invasão alemã. E é desse museu que quero falar hoje. O Museu foi feito para retratar o modo como os holandeses viveram durante os anos de ocupação alemã, durante a segunda guerra. Você entra no museu e recebe um áudio guia. Você senta num primeiro vídeo que apresenta três personagens e como foi a vida deles durante a ocupação. São construídas três narrativas de posições possíveis que existiram na vida cotidiana da ocupação: resistir, colaborar ou se adaptar.
Resistir, colaborar ou se adaptar. Para mim essas são as três opções que teremos que escolher nesses tempos vindouros em que a avalanche de conservadorismo já tomou conta do solo em que pisamos cotidianamente.
No Museu da resistência, as histórias do resistir eram as das pessoas que esconderam judeus em suas casas, mulheres que fingiam estar grávidas e escondiam debaixo de suas roupas tíquetes de comida para pegar mais comida para dar aos judeus que estavam escondidos, pessoas que falsificavam documentos para conseguir retirar do país judeus que estavam ameaçados. Eram tantas histórias, de tanta gente, que ajudaram de tantas formas que me emociono ainda.
As histórias do colaborar eram daquelas pessoas que conseguiram cargos na gestão alemã e que tiveram vantagens pessoais e profissionais com o regime. Consigo entender essas pessoas por mais bizarro que isso possa parecer. Consigo entender que eles acreditavam sim que estavam fazendo um serviço a humanidade ao eliminar aquela “raça judia” e que então, se eles trabalhassem bem para o governo alemão estavam colaborando com um projeto de sociedade que eles também achavam que era o melhor. Aqui para mim está o grande desafio das minhas relações atuais: conseguir reconhecer que para algumas pessoas que me são queridas, um projeto de sociedade que empurra inúmeras pessoas para o armário e para a morte é sim um projeto legítimo. Entendo que essas pessoas sentem um mal-estar com a diferença. Eu também sinto. Eu também prefiro estar entre semelhantes. Eu também prefiro estar perto de quem pensa semelhante e de quem eu tenho afinidades políticas. E o que vamos fazer com a diferença? Como vamos lidar com quem pensa diferente? Aniquilar a diferença não é exatamente o que não queremos? Essas pra mim são as perguntas cruciais. Como educar para que as diferenças não sejam aniquiladas, mas que haja estrutura para que existam sem se tornarem desigualdades? Mas será que toda diferença é a mesma coisa? Quais diferenças são transformadas em desigualdades de oportunidades? Quais diferenças se tornam sentença de morte?
As histórias do eixo “adaptar” também geram muitas possibilidades de reflexão. A primeira história era de uma mãe holandesa que estava no parquinho brincando com os filhos e a vizinha e chega uma outra mãe os chamam para ir ao zoológico. Só que já havia uma lei que proibia que judeus fossem ao zoológico e a vizinha que estava com ela era judia. Ela levou a vizinha de volta para casa e foi com os filhos e os outros amigos para o zoológico. Ela manteve sua vida e se adaptou as novas regras do novo regime. Sempre lembro das histórias que meus pais me contam da época da ditadura. Meu pai sempre fala assim: eu tinha vindo do interior, tinha que trabalhar, tinha que me virar, não tinha como pensar em ditadura. Ele se adaptou. Ele sempre faz a piada do “O que você acha pai? Eu? Eu não acho nada. O último que achou alguma coisa não foi achado até hoje”. Talvez ele deixasse a filha da vizinha judia em casa e nos levasse ao zoológico. Talvez fosse o jeito dele seguir vivendo no âmbito privado fingindo que as coisas estavam como sempre estiveram. E talvez isso fosse o possível para uma pessoa que tinha vindo do interior, não tinha grana e precisava sustentar a família. Dá pra entender a escolha do adaptar como uma escolha necessária quando a gente cruza as opressões. Dá pra entender muitas pessoas das camadas populares que pegam ônibus lotado e para locais distantes do centro ficarem chateados com manifestações… E nesse eixo do museu eles contam também que os soldados alemães que ocuparam a Holanda eram gentis com as pessoas e que muitos começaram a falar assim: “até que não é tão ruim essa ocupação, os alemães não são assim tão maus”. Lembro da minha dissertação do mestrado que estudei violência e que muitas pessoas falavam mal da polícia enquanto instituição, mas bem do vizinho que era policial. Essa distinção entre instituição e sujeito que está lá é necessária, mas não pode nos desresponsabilizar… não posso me esconder na instituição, também não posso não vestir a camisa da instituição quando estou naquele papel…
Quando penso no meu lugar de fala, de mulher branca, escolarizada, cis, hetero fico achando que eu devia me adaptar e seguir vivendo. Fico pensando na autopreservação individual, nos meus filhos… Aí penso nos meus privilégios. Só porque o mundo é como é e eu sou cheia de privilégios é que eu posso até cogitar me adaptar. E penso no mundo que eu acredito que quero viver.
E penso que é impossível me adaptar. Porque me adaptar a um mundo em que pessoas morrem por amarem e por quererem viver em corpos que as façam felizes não me parece possível.
Vamos resistir. Vou re-existir.